terça-feira, 26 de junho de 2007

estória

Ela costumava estar na varanda. Gostava de olhar as pessoas que passavam na rua. Uma data de gente onde não via qualquer tipo de interesse. Analisava-as pelas passadas, pelo modo como se moviam. O cimo e a nuca das cabeças não revelam grandes forças de carácter. Tinha saudades dele. Nunca ninguém a via. É o que dá morar num sexto andar. Fumava cigarros às vezes e tentava ler livros mas não conseguia deixar de olhar, apesar de não ver nenhum interesse especial naquilo. Era o seu prazer diário, apesar de lhe adensar a solidão. Também havia pássaros. Há sempre pássaros nos prédios altos. Infelizmente as pombas não suscitam grande entusiasmo. Sonhava em ver corvos ou uma qualquer criatura mágica com asas a pousar numa açoteia num momento do sol raiar. E aí sorria. Sentia-se por vezes mergulhar no vazio. Estava estéril, não sentia nada a maior parte das vezes e isso causava-lhe um desconforto como quando (segundo dizem) perdemos um braço ou uma perna e continuamos a sentir a sua presença naquela ausência amputada. Ela sentia que não sentia. E isso era angustiante, quase asfixiante por vezes. Gostava também de fechar os olhos e ficar a ouvir a chuva. A chuva tinha algo de verdade. Parece que lhe limpava a alma. Andava com uma sensação estranha ultimamente. Como um reboliço, quando as gaivotas fogem para terra quando se aproxima tempestade. E isso estranhamente dava-lhe uma sensação de conforto.

Ele costumava parar no terraço. Deitava-se numa cadeira longa e deixava-se consumir e absorver pelos barulhos da cidade. Os carros, as pessoas, as buzinas histéricas, os vizinhos do sétimo andar que teimavam estupidamente em discutir com a janela aberta, o vento que devia fazer mover os ramos mas ali não havia árvores então só se fazia ouvir ao mexer pequenas coisas. Gostava destes momentos em que não tinha que falar com ninguém, não tinha que adoptar a pose de bancário seguro e simpático, a do filho preocupado e feliz (bem gostava de saber quando te casas, dizia-lhe a mãe, invariavelmente quando mais uma vez aparecia só nos jantares de família), o amigo sociável e interessante (dá mesmo trabalho às vezes estar a sorrir e dizer futilidades durante horas acompanhado de um copo de gin que me segreda ao ouvido que eu devia fugir; fugir para bem longe onde as pessoas não são estúpidas e não passam a maior parte do tempo a fingir que são felizes). Perguntava-se por vezes quem raio era aquela mulher estranha que ficava na varanda a olhar obcecadamente para as pessoas que passavam lá em baixo ou para as pombas com um ar como se elas não fossem pombas, fossem outra coisa qualquer. Perguntava-se no início se ela teria algum problema mental, se calhar estava deprimida. Assustava-o esse facto, como se ela estivesse a tentar arranjar coragem para cometer suicídio ele tivesse que intervir nessa altura e fosse obrigado a salvá-la. Passado um tempo passava horas a olhar para ela. Começou a reparar que ela era bonita, que sorria e fechava os olhos e puxava a cabeça para trás quando fazia sol e os cabelos cobre brilhavam. Acariciava o corrimão da varanda frequentemente como se aquele gesto fosse fazer surgir um qualquer génio. Se calhar pedia desejos enquanto deslizava a mão. Ou pensava em alguém porque o fazia muito devagar, quase com carinho e ficava com um ar distante, tão longe. Às vezes cruzava os braços e apoiava lá a cabeça, com um ar de enfado que fazemos quando temos cinco anos, nada para fazer e não temos outros meninos com quem brincar. Quando descobrimos que todos os brinquedos que temos não têm vida e precisamos de outra voz para inventarmos histórias e fazer os berlindes mágicos outra vez. Não devemos estar demasiado tempo sós. Muitas vezes tinha um ar triste, de quem perdeu alguma coisa ou alguém e nesses momentos não pensava em mais nada. Ficava ali a sofrer com ela, a confortá-la no espaço mudo que ia do terraço à varanda. E toda a tristeza do mundo se abatia ali, naquele tempo contido. E depois ia tomar banho. A água quente sobre o meu corpo nu até ficar quase sem sentir nada. Até estar limpo.

quinta-feira, 21 de junho de 2007

6 da tarde

A cidade. Fumo de escape que penetra o meu cheiro. O alcatrão, o barulho dos trabalhadores. Pessoas alienadas. Calos nas mãos. Sobrolho cerrado. A rigidez das árvores. O luto. O castanho. Ponteiros monótonos. Um atropelamento. Sangue amarelo. A indiferença.

o tempo

Correr. Gritar. Praguejar. Foder o mundo. E a chuva. Porque está a chover. Continua a Chover no meu sorriso.