quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Questionário

Qual considera ser a sua missão na vida?

Sou um ser humano absolutamente inútil.
Quais as suas convicções políticas?
O que está está bem. A oposição
ao que está está bem. A gente deveria ser
capaz de imaginar uma terceira via - mas qual?
A sua opinião em religião - se a tem?
A mesma que na música: na verdade só
quem for realmente imusical pode ser musical.
O que procura nas pessoas? As minhas relações
infelizmente têm pouca ou nenhuma consistência.
O que procura nos livros? Profundidade filosófica?
Vastidão? Elevação? Épica? Lírica?
Procuro a esfera perfeita.
Qual é a coisa mais bela que conhece?
Pássaros nos cemitérios, borboletas nos campos de batalha,
qualquer coisa entre. Não sei.
O seu hobby preferido? Não tenho hobbies.
O seu pecado favorito? Onanismo.
E para concluir (tão brevemente quanto possível):
Porque é que escreve?
Não tenho mais nada a fazer. Vate recto.
Faz jogos de palavras também?
Sim - também faço jogos de palavras.

Gunnar Ekelöf (1907-1968), In Antologia Poética, Tradução de Ana Hatherly e Vasco Graça Moura, Quetzal, 1992


Apaixonei-me por este poema imediatamente há uns anos. Pelos pássaros nos cemitérios e borboletas nos campos de batalha. Imagem perfeita quase etérea. Andamos todos no limbo. À espera de ser resgatados por coisas assim. Borboletas e pássaros.


segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Poema Geológico

O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta.

Miguel Torga in Diário XII

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Haka



Haj(k)a pujança.. Sábado os nossos meninos deviam apostar numa dancinha do vira ou pauliteiros de miranda. Ao som daquelas vozes rancheiras minhotas muito muito agudinhas..

terça-feira, 24 de julho de 2007

OS BRAÇOS

Como viver? Não há outra pergunta séria.
Um velho com o braço direito partido
folheia o jornal com a mão esquerda.
Penso: assim seria mais fácil.
O corpo a decidir por nós.
Olho para mim: os dois braços intactos.
Que fazer?



Gonçalo M. Tavares
poemas do livro 1, Observações.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

ENCANTAMENTO

há uma palavra mágica que se diz. essa palavra
é sempre diferente. montanha, precipício, brilho.
essa palavra pode ser um olhar. a voz. um olhar.

essa palavra pode ser o espaço de silêncio onde
não se disse uma palavra. brilho, ...........,montanha.
essa palavra pode ser uma palavra, qualquer palavra.

há uma palavra mágica que se diz. há um momento.
depois dessa palavra, só depois dessa palavra,
pode começar o amor.


José Luís Peixoto
A Casa, a Escuridão


[Por todas as palavras que eu não te digo
Por todos os olhares que tu não vês
Por todos os resquícios que tu não sabes
Por todas as palavras (palavra) que te quero dizer]

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Love trains

O que é que uma pessoa neurótica pensa quando anda de transportes públicos? Cenário: comboio urbano. Trajecto: Braga - Porto. Porto - Braga. Vinha no outro dia, no das 20h40. Atrás do meu banco uma senhora com uma capacidade maxilar impressionante. Ela devia mascar.. nem sei.. Deixa ver se encontro uma marca temporal que pareça impressionante. 100 mascadelas por minuto. Não seriam tantas com certeza pois intercalava o musical com perguntas e respostas à sua companheira de banco. Jogos de futebol infantil e mascadelas desenfreadas. Masca masca masca. Conversa de treta. Masca masca masca. Sonoras. Sim, e esse era de facto o cerne da minha atenção. Por momentos o cerne do meu mundo. Cada molécula do meu corpo foi ocupada por aquele tchkkk incessante e histérico que ecoava em todo o meu ser. A obsessão originada por este movimento sincronizado e ritmado começou a atingir limites alarmantes. Laivos de cólera, profunda impaciência. Uma vontade esmagadora de me virar para a dita senhora e perguntar se seria possível acabar com aquele tormento. Estava a ficar com stress emocional e acho que começava a tremer. Resolvi então mudar de lugar.

terça-feira, 17 de julho de 2007

Birds



Vencedor do prémio vídeo musical do festival de curtas de vila do conde. Genial.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

À tardinha

O ladrão que roubava gemidos de esperma. O velho do mar. O Sr. que quando dava saltos era igual às pessoas altas. Os beijos recortados pedaços de película. O embondeiro e a raposa. A rapariga que comia pássaros. Os pássaros todos. Bruxas e centauros e fadas e elfos. O poço verde. Conchas búzios beijinhos. Caixas. De todas as formas e feitios. Borboletas brancas e cerejeiras em flor. A flor azul. As viagens. Todas. A pequena e os chocolates. Modos de amor. Caleidoscópios. As rugas da minha avó. O meu bairro de afectos tem muitas janelas. E telhados bonitos. E portas grandes e pequenas. E passagens secretas e recantos. E jardins com muros com azulejos. Podes vir visitar-me à tardinha. Ondulamos na rede com pedaços de céu recortados na pérgola de jasmim e orquídeas baunilha e jade.

Visita indesejada

A minha avó diz que quando os cães uivam estão a chamar a morte. Isto depois de subir as escadas em modo histérico porque o meu cão estava a uivar na varanda do meu quarto. E a criar um coro de cães uivadores pelo bairro. E suspeito que a dita morte não tem problemas auditivos. Um dia destes juntam-se cães e corujas piadoras e gatos pretos e outros que tal e estamos todos lixados.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Lembras-te daquele dia? De planar asas vermelhas no céu púrpura? Do corpo gelado na terra molhada arrepios sol azul e respirar saliva quente?
Naquela sala só cabem segredos. Surrurros fechados no lodo da fenda do tronco oco da parede de pedra.
Lembras-te do cheiro a canela e do casaco de lã cinzenta botões de madeira?
Conheci um rapaz que não chorava. Nunca. Sentimos pena das pessoas pelos motivos mais absurdos.
Lembras-te de todas as vezes que o mundo acabou? Dos destroços, dos pedaços?
Lembras-te de ter medo? De não conseguir respirar?
Lembras-te do sabor das cerejas quando está muito frio?
Da pele morna e castanha? Do sabor dos pêssegos doces?
As minhas mãos estão em carne viva. Mas a curva do pescoço está intacta.
Como quando éramos crianças.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

" Trago-te o mar, as nuvens que só as crianças sonham a vermelho. Trago-te a terra que se transformou em húmus e a seiva morna das árvores, a dor que a vida faz latejar no pulso dos homens sozinhos... e o tempo, essa doença dos vivos, eternizou-nos. Noite após noite, falo-te, amo-te sem que o saibas. Posso tocar-te sem sentires sequer a minha presença. Posso estar, sem estar. Trago a cinza das horas nos cabelos e os dias da paixão onde não há dias nenhuns. Trago-te as palavras, e este cigarro que fumaremos a dois... e do mar recolhi esta coroa de rubras escamas e o silêncio dos náufragos... uma concha, um punhado de sal e a moeda de ouro que te enterro na boca antes de prosseguires viagem."

Al Bert0 in "O Anjo Mudo"

(porque sim. pelo céu vermelho. não por ti.)

terça-feira, 26 de junho de 2007

estória

Ela costumava estar na varanda. Gostava de olhar as pessoas que passavam na rua. Uma data de gente onde não via qualquer tipo de interesse. Analisava-as pelas passadas, pelo modo como se moviam. O cimo e a nuca das cabeças não revelam grandes forças de carácter. Tinha saudades dele. Nunca ninguém a via. É o que dá morar num sexto andar. Fumava cigarros às vezes e tentava ler livros mas não conseguia deixar de olhar, apesar de não ver nenhum interesse especial naquilo. Era o seu prazer diário, apesar de lhe adensar a solidão. Também havia pássaros. Há sempre pássaros nos prédios altos. Infelizmente as pombas não suscitam grande entusiasmo. Sonhava em ver corvos ou uma qualquer criatura mágica com asas a pousar numa açoteia num momento do sol raiar. E aí sorria. Sentia-se por vezes mergulhar no vazio. Estava estéril, não sentia nada a maior parte das vezes e isso causava-lhe um desconforto como quando (segundo dizem) perdemos um braço ou uma perna e continuamos a sentir a sua presença naquela ausência amputada. Ela sentia que não sentia. E isso era angustiante, quase asfixiante por vezes. Gostava também de fechar os olhos e ficar a ouvir a chuva. A chuva tinha algo de verdade. Parece que lhe limpava a alma. Andava com uma sensação estranha ultimamente. Como um reboliço, quando as gaivotas fogem para terra quando se aproxima tempestade. E isso estranhamente dava-lhe uma sensação de conforto.

Ele costumava parar no terraço. Deitava-se numa cadeira longa e deixava-se consumir e absorver pelos barulhos da cidade. Os carros, as pessoas, as buzinas histéricas, os vizinhos do sétimo andar que teimavam estupidamente em discutir com a janela aberta, o vento que devia fazer mover os ramos mas ali não havia árvores então só se fazia ouvir ao mexer pequenas coisas. Gostava destes momentos em que não tinha que falar com ninguém, não tinha que adoptar a pose de bancário seguro e simpático, a do filho preocupado e feliz (bem gostava de saber quando te casas, dizia-lhe a mãe, invariavelmente quando mais uma vez aparecia só nos jantares de família), o amigo sociável e interessante (dá mesmo trabalho às vezes estar a sorrir e dizer futilidades durante horas acompanhado de um copo de gin que me segreda ao ouvido que eu devia fugir; fugir para bem longe onde as pessoas não são estúpidas e não passam a maior parte do tempo a fingir que são felizes). Perguntava-se por vezes quem raio era aquela mulher estranha que ficava na varanda a olhar obcecadamente para as pessoas que passavam lá em baixo ou para as pombas com um ar como se elas não fossem pombas, fossem outra coisa qualquer. Perguntava-se no início se ela teria algum problema mental, se calhar estava deprimida. Assustava-o esse facto, como se ela estivesse a tentar arranjar coragem para cometer suicídio ele tivesse que intervir nessa altura e fosse obrigado a salvá-la. Passado um tempo passava horas a olhar para ela. Começou a reparar que ela era bonita, que sorria e fechava os olhos e puxava a cabeça para trás quando fazia sol e os cabelos cobre brilhavam. Acariciava o corrimão da varanda frequentemente como se aquele gesto fosse fazer surgir um qualquer génio. Se calhar pedia desejos enquanto deslizava a mão. Ou pensava em alguém porque o fazia muito devagar, quase com carinho e ficava com um ar distante, tão longe. Às vezes cruzava os braços e apoiava lá a cabeça, com um ar de enfado que fazemos quando temos cinco anos, nada para fazer e não temos outros meninos com quem brincar. Quando descobrimos que todos os brinquedos que temos não têm vida e precisamos de outra voz para inventarmos histórias e fazer os berlindes mágicos outra vez. Não devemos estar demasiado tempo sós. Muitas vezes tinha um ar triste, de quem perdeu alguma coisa ou alguém e nesses momentos não pensava em mais nada. Ficava ali a sofrer com ela, a confortá-la no espaço mudo que ia do terraço à varanda. E toda a tristeza do mundo se abatia ali, naquele tempo contido. E depois ia tomar banho. A água quente sobre o meu corpo nu até ficar quase sem sentir nada. Até estar limpo.

quinta-feira, 21 de junho de 2007

6 da tarde

A cidade. Fumo de escape que penetra o meu cheiro. O alcatrão, o barulho dos trabalhadores. Pessoas alienadas. Calos nas mãos. Sobrolho cerrado. A rigidez das árvores. O luto. O castanho. Ponteiros monótonos. Um atropelamento. Sangue amarelo. A indiferença.

o tempo

Correr. Gritar. Praguejar. Foder o mundo. E a chuva. Porque está a chover. Continua a Chover no meu sorriso.